sexta-feira, 15 de outubro de 2010

O meu buraco esquerdo

neste exercício, os alunos eram confrontados com um objecto e obrigados a escrever um texto com este - no caso, umas algemas felpudas... - como protagonista, e em discurso directo.
O meu buraco esquerdo já não funciona tão bem como dantes. Anda perro. A idade não perdoa.

Nem sempre tive esta vida, nem sempre fui escrava de prazeres carnais, nem sempre, nem sempre. O importante é ter um rumo, não andar à deriva.

Nasci do calor da fornaça. Singular. Encaixaram-me minutos depois à corrente que viria a ligar-me ao meu irmão gémeo, ao meu buraco esquerdo.

Na fábrica todos temos os mesmos pais. É triste dizer que nunca tive tratamento especial da parte deles. É um sentimento colectivo, penso.

Embora muitos novos, rapidamente fomos às mãos da polícia. O nosso primeiro trabalho! Estávamos tão orgulhosos. Nos primeiros dias andávamos pegadinhos ao coldre, víamos a cidade reflectida no corpo. Fantástico.

O nosso primeiro preso foi um traficante de droga. Quando o polícia pegou em nós e nos atou àquelas porcas mãos, foi revigorante. Sentimos a adrenalina a subir-nos pelo ferro acima. A primeira semana foi sempre assim. A cada algemada, uma experiência nova. Que bom sentir que éramos úteis.

Um dia, o Inverno chegou e com ele veio a chuva. Depois da temporada de Verão as primeiras gotas até souberam bem, mas nada nos levaria a prever o que aconteceu ao meu buraco esquerdo. Estava perro. Por mais óleo que lhe pusessem, não havia maneira daquela perna funcionar. Enfim, foi o início do nosso fim.

Fomos reciclados. Puseram-nos penugem por cima e cá estamos, a servir a bel prazer os actos mais delirantes dos mais excitados casais.

Filipe de Carvalho

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