sábado, 16 de outubro de 2010

A ditadura da escolha

reacção crónica de Ana de São João

Quantas de nós não chegaram já a casa e abriram o frigorífico a roer as unhas de pânico face à difícil decisão do que fazer para o jantar? Decidir, dia após dia, refeição após refeição, qual o repasto da família é um dos maiores desafios de qualquer dona de casa. Seria bem mais fácil seguir um guião, tirar à sorte ou até seguir os caprichos de um qualquer comensal excêntrico e guloso. Cozinhar não exige metade do esforço necessário para escolher o prato a confeccionar. E geralmente a família também não ajuda muito, respondendo invariavelmente, “qualquer coisa” - ou pior ainda - “qualquer coisa que não dê muito trabalho” quando lhes é pedida uma opinião. Trabalho dá escolher. Fazer é canja.

Pensar numa refeição completa e equilibrada é o cabo dos trabalhos. Primeiro é preciso definir a componente proteica da refeição: carne ou peixe? De seguida é preciso escolher os hidratos de carbono: batata, arroz ou massa? E a hortaliçazinha para acompanhar? Salada de alface, grelos cozidos, esparregado ou feijão verde estufado? São milhares de permutações colocadas ao nosso dispor através da oferta (mais ou menos gourmet) dos supermercados das nossas cidades. Acabou-se o descanso de cozinhar com o que havia à disposição na época - arduamente regateado no mercado - ou então com as coisitas que a família lá ia trazendo da terra. Saudosos aqueles invernos inteiros passados a comer apenas de fruta maçãs e laranjas. E das do Algarve! Não se perdia tanto tempo como se perde hoje em dia, éramos saudáveis à mesma, ninguém se chateava muito com isso e havia uma felicidade genuína quando apareciam os primeiros morangos.

Entrar num supermercado mói a cabeça e derrota o espírito. Ter de decidir se o iogurte é normal, magro, ou sem açúcar - sim, porque magro é sem gordura, sem açúcar é outra categoria completamente diferente -, com pedaços ou sem pedaços, de morango, banana ou natural, se é sólido ou líquido, cremoso ou batido, se tem cereais ou pepitas, se faz bem ao colesterol,à prisão de ventre ou à osteoporose, se é grego ou se é espanhol, de marca branca ou do Vermeer, para adulto ou para criança, em frasco de plástico ou em frasco de vidro. Tudo isto num corredor gelado onde congelamos, fungamos e receamos pela vida, não vá aparecer um urso polar para nos comer, porque desde que inventaram as alterações climáticas – e o avião caiu na ilha do Lost - nunca se sabe quando podemos ser atacados por um urso polar. Escolher iogurtes é coisa para deixar uma pessoa descorçoada e exausta e ainda só resolvemos metade do pequeno-almoço.

Passamos o dia a perder tempo com escolhas. Os processos de decisão são cada vez mais complexos, com mais variáveis, consumindo o nosso tempo e paciência e não se traduzindo necessariamente num aumento significativo da nossa qualidade de vida. Pagamos um preço demasiado elevado pela liberdade de escolha e não somos mais felizes por isso. Dizer que a liberdade traz felicidade fica bem nas cerimónias do 25 de Abril mas eu já sou demasiado caturra para cair nessa esparrela: prefiro mil vezes cozinhar a pedido ao invés de ter de decidir a ementa, seleccionar os pratos, e escolher os produtos. Se não ter por onde escolher é ditadura, não conseguir escolher por ter demasiada escolha também não anda muito longe disso. Porque o tempo é hoje em dia o nosso mais valioso bem de consumo; e não há dinheiro que o pague.

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