terça-feira, 26 de outubro de 2010

primeiros aforismos

sobre 4 temas: amor, liberdade, pão de ló e suspensórios.

Ser livre é deixar de não dizer.

O amor acaba sempre na véspera.
Emanuel Santos

Os suspensórios só servem se se puder vestir umas calças.
Filipa Avillez

Suspendo o aforismo vago, vagueio suspenso, calças para que te quero.
Nuno Vidal

Pode haver amor à primeira vista, mas é sempre bom esfregar os olhos e voltar a olhar.

Se o amor é cego, então nunca chegamos a ver quem pensamos amar.

O amor é como um pingo de azeite num copo de água, se tentarmos apanhá-lo, ele foge.
Rita La Rochezoire

BULLSHIT


crónica de Pedro Fontes

Não há tradução para o termo bullshit. No cinema, usa-se a "treta", ou resgata-se a "balela". Mas nenhuma lhe é conforme. A treta é algo aceitável, negligenciável. A balela exprime uma certa inadvertência. Tem laivos de ignomínia e é pueril, como uma onomatopeia.

Já a bullshit é sublime. Cavalga-nos a espinha antes de sair. É palavra composta de um palavrão. Os palavrões, como todos os indefinidos, não são domesticáveis. Há, por isso, qualquer coisa de rebelde em bullshit. É a institucionalização de um palavrão. Os palavrões são populares. Bullshit é civilizacional.

Definindo bullshit diríamos (no uso do científico "nós" majestático) que representa uma dissimulação. Mas é uma dissimulação contratual. A bullshit não é um engodo ou um logro. É um exagero retórico da realidade no qual estamos todos de acordo.

Acima de tudo, bullshit é um oxímaro. Não há em qualquer outro vocábulo maior disparidade entre a aversão causada pela ideia e a sedução desencadeada pela prática. Bullshit, enquanto ideia, é uma mentira e é desprezível. Enquanto prática, é uma delicadeza.

A bullshit é um símbolo. Um símbolo do contraste entre a devoção pagã que a sociedade dedica à Verdade e o desprezo que reserva à sinceridade.

Houvesse na bullshit e na verdade interesses sucedâneos ou compatíveis e trilhariam, simbióticas, o mesmo caminho. Não é o caso. A verdade é a verdade que é. Nisso consiste a sua virtude. A bullshit é a verdade que se deseja. É essa a sua qualidade. Na bullshit, a verdade é uma figura de estilo, uma imputação formal para garantir a credibilidade.

São como que a mulher e a amante da sociedade. À verdade vêmo-la a parir, transpirada. A trocar as fraldas aos filhos, a emborrachar os ovos e a arrancar os pêlos do queixo. A amante está sempre arranjada, toda porreira. Tem desejos de usurpação, mas não de compromisso. Mantém segredos, calculando ser-lhe o mistério proveitoso.Sabe vender a ilusão de que as coisas podem ser sempre assim.

A bullshit é, de facto, agradável. Apraz-nos pensar que os políticos são bem intencionados. Que alguém tem a faculdade mental de fazer previsões macroeconómicas com factores na ordem dos milhares de milhões de euros com base em ciência. Que as pessoas não nos julgam em função de um par de sapatos que usámos em 1993. Que a comunidade empresarial mostra assinalável convergência no reconhecimento da necessidade de alertar para a urgência de pugnar pela sustentabilidade das práticas comerciais, ambientais e organizacionais das suas áreas de negócio. Que o mundo não é, no limite, imune à nossa presença em específico.

Há dignidade na bullshit. É um testemunho da fraqueza humana, passe a redundância. O Homem não suporta o acidente axiológico. A inconsequência do bem e a impunidade do mal são-lhe incomportáveis. A bullshit é a convenção que previne o confronto com o assombrante facto de que todas as histórias terminam com: "e depois, morreu".

Os dias passam-se em plena bullshit, e passam-se bem. Admitimos que alguém possa achar o Braveheart o melhor filme de sempre. Ela está gira, quando nem por isso. Os jantares nas casas dos outros são óptimos. Que felizes estamos nos anos de malta que não conhecemos muito bem. Como adoramos livros que nunca lemos, e com que alegria os levamos para a praia para dizer que são bons e levezinhos. Digam o que disserem, a vida só depende de nós.Where there's a will, there's a way. Não, ninguém envelheceu ou engordou. O que interessa é a intenção.

A bullshit é, afinal, nobre. É o humano amparo para a crueldade e nihilismo na Natureza. A bullshit é o reverso da árvore que, caindo num bosque onde ninguém a ouviu cair, não fez som. É aquilo que todos ouvem sem que aconteça de facto. Nessa medida, é retumbantemente real. Viver sem bullshit é viver em dissonância. É ser chato e cínico. É ser um rebelde fácil, por se contestar um erro voluntário. É ser um realista desapegado da ideia social de realidade. É a única e, ainda assim, paradoxalmente errada maneira de ser um cientista social.

Pergunto-me com frequência, por isso, o que carreia a aversão abstracta à bullshit.

Não creio que seja fácil, mas parece-me ser simples. A bullshit obsta à transcendência. Irreleva-a, porque a vulgariza. A bullshit é a guardiã das expectativas, e a experiência humana precisa do consolo translúcido de um propósito final. A verdade, por sua vez, tem o potencial de sindicar ao óbvio o extraordinário. A História não se compadece com boas intenções - julga os factos. E os factos são que nem todos, por dignos que sejam, são memoráveis.

A verdade é como o asterisco depois do slogan. Não é o que interessa, mas é o fundamental.

Há beleza nisso também. Tenho um primo miúdo com quem nunca uso bullshit, e ele repete-me a graçola. Pu-lo às cavalitas em noite de chuva de estrelas.

"Porque caem as estrelas?" Perguntou-me.

Respondi-lhe que não eram estrelas. Eram pedras do espaço, atiradas com muita força, que ardiam com a resistência do ar.

"Porque é que as pessoas lhes chamam estrelas?"

Não sabia. Mas achava que era por terem dificuldade a chamar pedra a algo tão bonito.

"Mesmo quando as coisas são boas como são, as pessoas têm necessidade de mentir. Eu acho que uma pedra voadora a arder é muito mais fixe do que uma estrela parada.

Se eu correr muito depressa, também ardo?"

Ardes que nem frango.

"Um dia, vou pegar fogo"

Talvez fosse. Expressando o meu lamento pelo dia em que dispensaria se sentar nos meus ombros, pedi-lhe para descer porque começava a ficar pesado.

"Eu nunca me vou fartar de andar às tuas cavalitas".

Não mentia. Mas ia-se fartar. E ia chamar-lhes estrelas cadentes. Aconteceria quando deixasse de acreditar que podia brilhar com o atrito.

sábado, 16 de outubro de 2010

algemas


exercício do objecto em discurso directo

- Nunca pensei passar por isto, fogo. Imaginem-me esta merda - enfeitarem-me com um pêlo preto, macio e delicado. Ó caroço. Fónix, isto é de gaja, pá! Lá porque o meu nome é “Algemas” eu sou muita macho, ouviram! Tsss… isto é uma humilhação do caneco. E o pior é que os outros fiquem a duvidar da minha masculinidade hã?! Dass…
Vocês sabem por acaso qual é a sensação de amarrar e tirar os movimentos a um gajo que acabou de matar um polícia?! O sabor do sangue do animal a escorrer-lhe pelos pulsos apenas porque se quer livrar de mim mas não consegue e por isso lhe rasgo a pele? É delicioso! E agora, fazem-me isto: metem-me pêlo, vejam bem. Estou enojado e atormentado até às entranhas. Já imaginaram os lindos nomes que me vão chamar lá na esquadra? Parece-me já estar a ouvi-los com bocas tipo: “bichona; rabicho; és linda macia e cheirosinha; deixa-me roçar-me no teu pêlo…” Oh cum caneco.
Mas, deixem ‘tar que não perdem pela demora: deixem que agora vou ser eu a dar-lhes a volta – amanhã falo com a minha amiga Leona e juro que ela me ajuda a amarrar o idiota que teve a ideia peludenta. A caminha de serviço lá da esquadra serve bem e, boazona e astuta como ela é, num piscar de olhos… ahahah, já estou a vê-lo tudo nu, comigo a acariciar-lhe os pulsos enquanto ele tenta chegar à roupa. E juro que vai buscá-las ao lixo dos restos da cozinha! Quem ri por último ri melhor e vai ser de certeza o polícia do ano. Dou-lhe direito a prémio de honra e tudo: nu, amarrado e subserviente.
Coitado, ainda não fiz nada e já ‘tou com pena do gajo. Pensando bem… e não serão quase todos assim?

Alda Silvestre

coluna de opinião

Bansky, o artista britânico conhecido pelos seus famosos graffitis, foi convidado a realizar a sua própria versão do genérico de entrada da série televisiva “The Simpsons”. Até aí tudo bem, não fosse o facto desta conter imagens que fazem alusão à exploração de trabalhadores asiáticos na criação de merchandising e na produção de cada episódio desta série. Entre as cenas podem observar-se trabalhadores em série sob as ordens de um superior, a utilização de animais para a fabricação do merchandising dos “The Simpsons” - assim como crianças a trabalhar retratando desta forma a exploração infantil bastante presente em países orientais. Tudo isto acontece quando surgem notícias sobre a terceirização feita pela FOX a uma companhia sul coreana. Entretanto, a FOX começou a remover os vídeos alojados no YouTube relativos ao genérico feito por Bansky. Estranho, não? É como se o ladrão sentisse o cheiro a prisão e começasse a esconder todas as evidências.
Por falar em prisão, nesta mesma semana o chinês Liu Xiabo ganhou o prémio Nobel da Paz pela “sua longa luta e não violenta pelos direitos fundamentais da China”. Curiosamente (ou talvez “obviamente” uma que se trata de um homem de naturalidade chinesa) Xiabo encontra-se preso desde 2008 por alegada subversão à autoridade do país. “Apenas mais uma pena” pensará Liu dada a sua colecção de penas acumuladas ao longo dos anos impostas pelo regime chinês.
Todas estas notícias surgem de países asiáticos. Com os Estados Unidos metidos ao barulho (via FOX) para não variar. Estamos tão avançados tecnologicamente e tão retrógados mentalmente. Em pleno século XXI tudo continua a ser possível. Pelas piores razões. Homens que lutam pela liberdade de expressão (um direito que devia ser concedido a qualquer pessoa) a serem condenados a penas de prisão. Empresas como a FOX que se aproveitam da exploração de pessoas nesses países para seu próprio proveito. É uma triste realidade esta que se vive. Sobretudo para estas pessoas que são regidas pelos egos dos outros. Que remédio têm elas. Ou isso ou tornam-se companheiras de cela de Xiabo. Voltamos a Tiannamen. Bem-vindos ao circo.

Ricardo Costa

Os meus heróis andam de transportes públicos


exercício Crónica 'versus' Coluna de opinião

Todos nós crescemos com super-heróis. O super-homem, o homem aranha, o Batman. Todos tivemos a nossa infância marcada por personagens especiais com super-poderes. Eu confesso que o meu super-herói preferido era o Flash Gordon. Não me perguntem porquê que eu não sei explicar. Lembro-me da tarde de Domingo em que o meu pai chegou a casa e disse “Queres ir ao cinema logo à tarde ver o Flash Gordon?”. E eu mal cabia em mim de contente quando de repente me lembrei que exactamente à mesma hora nesse dia era transmitido na televisão mais um episódio da Abelha Maia. Tentei convencer o meu pai a ir ao cinema noutro dia mas ele manteve-se firme “Tu é que sabes. Tens que escolher se queres ir ao cinema ou se queres ficar em casa a ver televisão.” São momentos destes que definem a vida de uma pessoa. A escolha feita por mim naquele dia teria um impacto na minha vida que só muitos anos mais tarde eu viria a perceber. Fomos ver o Flash Gordon. Na memória guardo apenas a cor improvável do sangue do imperador Ming e a voz estridente da jovem que o Flash Gordon salvava repetidas vezes. Os anos passaram e nunca mais encontrei um super herói que me servisse de fonte de inspiração. Com excepção talvez do Super Pateta. Sempre tive uma ternura especial pelo personagem. Sobretudo pelo seu traje de super-herói. Todas as crianças sabem que as maiores aventuras da vida de uma pessoa acontecem quando estamos de pijama. Até que outro dia encontrei a Irene. Acerca de um ano atrás. A Irene é segurança no edifício onde trabalho. Chega todos os dias antes das 8 horas da manhã com vários sacos na mão e esgueira-se para a casa de banho onde troca de roupa para aparecer depois vestida com a farda da Securitas. Trabalha 12 horas até às 8 horas da noite engolindo o almoço à pressa por detrás do balcão do posto de trabalho onde passa praticamente todo o dia. Mora na margem sul e da família separam-na 2 horas de transportes públicos entre barcos e autocarros. Às vezes chega a casa e a filha já está deitada. Hoje os meus heróis já não usam malhas apertadas e capas esvoaçantes. Andam de transportes públicos carregando sacos e jornais de distribuição gratuita. Travam uma luta diária com uma máquina infernal que os esmaga todos os dias um pouco mais. Os seus poderes especiais são chegar a casa com algo mais do que as compras do dia. Um abraço, uma sopa quase pronta, uma tabuada revista à pressa. O seu músculo mais forte é o coração. É esse o seu super-poder. É assim com a Irene. Todos os dias atravessamos aquela porta e ela salva-nos com um sorriso franco e uma generosidade sem fim.

Pitta

A ditadura da escolha

reacção crónica de Ana de São João

Quantas de nós não chegaram já a casa e abriram o frigorífico a roer as unhas de pânico face à difícil decisão do que fazer para o jantar? Decidir, dia após dia, refeição após refeição, qual o repasto da família é um dos maiores desafios de qualquer dona de casa. Seria bem mais fácil seguir um guião, tirar à sorte ou até seguir os caprichos de um qualquer comensal excêntrico e guloso. Cozinhar não exige metade do esforço necessário para escolher o prato a confeccionar. E geralmente a família também não ajuda muito, respondendo invariavelmente, “qualquer coisa” - ou pior ainda - “qualquer coisa que não dê muito trabalho” quando lhes é pedida uma opinião. Trabalho dá escolher. Fazer é canja.

Pensar numa refeição completa e equilibrada é o cabo dos trabalhos. Primeiro é preciso definir a componente proteica da refeição: carne ou peixe? De seguida é preciso escolher os hidratos de carbono: batata, arroz ou massa? E a hortaliçazinha para acompanhar? Salada de alface, grelos cozidos, esparregado ou feijão verde estufado? São milhares de permutações colocadas ao nosso dispor através da oferta (mais ou menos gourmet) dos supermercados das nossas cidades. Acabou-se o descanso de cozinhar com o que havia à disposição na época - arduamente regateado no mercado - ou então com as coisitas que a família lá ia trazendo da terra. Saudosos aqueles invernos inteiros passados a comer apenas de fruta maçãs e laranjas. E das do Algarve! Não se perdia tanto tempo como se perde hoje em dia, éramos saudáveis à mesma, ninguém se chateava muito com isso e havia uma felicidade genuína quando apareciam os primeiros morangos.

Entrar num supermercado mói a cabeça e derrota o espírito. Ter de decidir se o iogurte é normal, magro, ou sem açúcar - sim, porque magro é sem gordura, sem açúcar é outra categoria completamente diferente -, com pedaços ou sem pedaços, de morango, banana ou natural, se é sólido ou líquido, cremoso ou batido, se tem cereais ou pepitas, se faz bem ao colesterol,à prisão de ventre ou à osteoporose, se é grego ou se é espanhol, de marca branca ou do Vermeer, para adulto ou para criança, em frasco de plástico ou em frasco de vidro. Tudo isto num corredor gelado onde congelamos, fungamos e receamos pela vida, não vá aparecer um urso polar para nos comer, porque desde que inventaram as alterações climáticas – e o avião caiu na ilha do Lost - nunca se sabe quando podemos ser atacados por um urso polar. Escolher iogurtes é coisa para deixar uma pessoa descorçoada e exausta e ainda só resolvemos metade do pequeno-almoço.

Passamos o dia a perder tempo com escolhas. Os processos de decisão são cada vez mais complexos, com mais variáveis, consumindo o nosso tempo e paciência e não se traduzindo necessariamente num aumento significativo da nossa qualidade de vida. Pagamos um preço demasiado elevado pela liberdade de escolha e não somos mais felizes por isso. Dizer que a liberdade traz felicidade fica bem nas cerimónias do 25 de Abril mas eu já sou demasiado caturra para cair nessa esparrela: prefiro mil vezes cozinhar a pedido ao invés de ter de decidir a ementa, seleccionar os pratos, e escolher os produtos. Se não ter por onde escolher é ditadura, não conseguir escolher por ter demasiada escolha também não anda muito longe disso. Porque o tempo é hoje em dia o nosso mais valioso bem de consumo; e não há dinheiro que o pague.

Possuo logo sou


crónica de Joana Galhardas

“Estamos de tanga”, diziam. “Estamos à beira de um colapso político”, dizem. “O Estado Social está em decadência”, arrematam. O capitalismo fracassa como Marx profetizava, e nós estamos acordados?
Vivemos num insustentável fetiche. Numa parafilia. Subversivos, consumimos, amamos o que consumimos, amamo-nos a nós próprios. Narcísicos, excitamo-nos e no fim de contas? Permanecemos insatisfeitos, nós queremos muito mais. Nada nos contenta e porquê? Porque nós somos o que temos. Refugiamo-nos em atitudes blasée pois não queremos sentir o desconforto da diferença, da dúvida provocadora de prurido. Imaginamos o Estado, esse órgão soberano, como se de um D. Sebastião envolto em névoa mística se tratasse e assim deixamo-nos ficar mais um bocadinho. Alguém há-de nos salvar.
Permanecemos imobilizados. Sentados, assistimos à telenovela política, ao descalabro e opinamos como treinadores de bancada. Atiramos umas quantas postas de pescada ao ar, de seguida fugimos não vão elas cairmos em cima. Depois? Como não há mais nada a fazer no vazio do ter, abrimos as carteiras e preenchemos esse espaço em falta. Saltamos de visa em visa até cairmos, gastamos o que não temos para ter criando uma apaixonante relação com a virtualidade. Sonhamos, e se sonhamos, viajamos até mas depressa acaba. Deixamos de ter, deixamos de ser e revoltados contra nós próprios olhamos para o poder político, tem de haver uma solução. Agarramo-nos ao patriotismo, enquanto uns rezam para que isto não caminhe a passos de coelho. Não queremos saber, desligamos e lá vamos andando. Tentamos contrariar, continuamente, as projecções e dizemos com falsa fé: “A vida continua”. Mantemo-nos calados porém, somos apanhados na própria armadilha. Este impulso para obter segurança e esta indiferença são os melhores amigos do autoritarismo. Esquecemo-nos rapidamente de questões passadas.
E afinal, somos o que temos ou temos o que somos? O que temos é relevante para a sociedade? Não sei. Não tenho resposta. Mas, devemos duvidar. Porque se ao duvidar isso nos fizer parar, pensar e relembrar aí sim, daremos conta do nosso poder de [des]construção.

História das Algemas

exercício do objecto em discurso directo

Sinto ao longe o arder da fornalha que me espera no final deste meu corredor da morte. Queima, como se quisesse expurgar do meu corpo os pecados de uma vida de desvarios mundanos, da qual já só resta uma pele ferrugenta e um peludo tecido esgaçado. Calor igual só senti naquela noite em que fui forjada, algures nas montanhas siberianas, e onde após umas fortes marteladas em cima, vi pela primeira vez o mundo com os meus olhos.
Que saudades dos tempos de então e dos prazeres nocturnos que vivi, naquela prisão da Sibéria, saltando de cela em cela, dando as boas vindas a todos novos residentes. Apesar de todos eles me passarem pelas mãos, foi o Oleg que me abriu os horizontes para uma nova vida, quando em determinada noite me trouxe consigo para fora dos muros infindáveis daquele local.
Mas amor é sofrimento e, sem que me conseguisse aperceber, estava a ser atirada ao mar durante a sua fuga. Durante anos, perdi o norte à vida e, sem sentido para a minha existência, deixei-me levar pela corrente rumo ao desconhecido. Passaram anos até que junto a uma praia voltei a sorrir para a vida. Os anos tinham deixado a sua marca mas a minha sensualidade não passou despercebida a um jovem artista de estampa vigorosa. Apesar da sua carreira musical estar a dar os primeiros passos acabámos por nos tornar inseparáveis durante todo o seu percurso. Juntamente com outros rapazes dávamos pelo nome de Village People e percorremos o mundo em noites intermináveis. Ai, os anos 70! Ai, as noites a abanar naquela cintura negra e musculada!
Foi sem glória que acabou esta amizade tão promissora quando, após um espectáculo em Portugal, fui abandonada numa pensão rasca, esquecida após uma noite de excessivos excessos. Encontrada por engano, por uma empregada de limpeza kosovar, fui entregue aos cuidados de um velho coleccionador de reliquias lisboeta. Durante muitos anos estive exposta, como um trofeú de guerra, junto à lareira da mansão deste aristocrata. Até que um dia, chegou a hora do seu filho - um jovem adorável que vi crescer - me vender em plena feira da ladra, sem um pingo de piedade, a um homem com uma boina sobre a cabeça.
A início quis acreditar que este homem me iria voltar a fazer feliz e tornar-me no seu objecto sexual. Um banho de cromo e uma cobertura felpuda em meu redor, que apesar de me fazer parecer uma alheira de mirandela, levou-me a acreditar numa segunda vida. Infelizmente, este homem traíu-me com as suas segundas intenções. Nem uma noite temática, nem um jantar mais arrojado, nada. Sou apenas um objecto de inspiração artística.

Paulo Falcão

Do carro lavado

Sobre o panorama actual do automóvel nacional eu podia escrever sobre como conduzem os portugueses - que parecem descendentes do Fangio – ou do seu fascínio por acidentes alheios ou ainda podia escrever sobre o amor pela buzina como forma de chamar a atenção. No entanto prefiro escrever sobre um assunto muito mais estrutural e representativo da nossa sociedade: a obsessão pelo carro lavado.
Certamente já ouvimos expressões como “tens o carro tão sujinho”, quando apenas temos o carro com uma cor mais esbranquiçada ou já vimos a raiva nos olhos de quem encontrou uma pequena cagadela de pombo no capô. Tem até um ponto de engraçado quando vemos alguém de bicos de pés a esticar a manga da camisola, disposto a sujar a sua própria roupa, para limpar uma pequena mancha de pó no tejadilho.
No fundo é como se os condutores portugueses se estivessem a preparar para a Miss Universo Automóvel com mais dedicação do que os nossos cantores têm para fazer uma música para a Eurovisão.
Mas já nos perguntámos porque razão é tão importante para os portugueses a limpeza exterior do automóvel? Sim, porque a higiene interior faz algum sentido visto os passageiros viverem, mesmo que por alguns minutos, naquele habitáculo. O que não acontece com o exterior, onde apenas tocam nos manípulos e mesmo esses são por breves segundos.
As teorias sobre esta questão divergem. Uns especialistas defendem que é para parecerem mais bonitos nas fotografias dos radares. Outros dizem que é para mostrarem o reflexo do perdedor quando o ultrapassarem na Nacional 10 a 120km/h. Outros ainda defendem que é para, quando travam para ver um acidente na beira da estrada, o seu carro ser o mais belo da fila de trânsito da segunda circular.
Mais interessante que a resposta é perceber que num contexto de crise, onde alimentos são riscados do cabaz mensal, viagens são retiradas do plano de festas das famílias, o acesso à cultura é negada aos mais pequenos por ser muito cara, nunca faltam 5€ para pagar a lavagem com esponjas felpudas ao domingo à tarde no Elefante Azul.
Chegamos então à conclusão que no final deste ano teremos mais cortes no orçamento, mais greves todos os meses, a produtividade mais baixa da Europa, um número recorde de desempregados e os carros mais belos que já foram vistos em cima de qualquer alcatrão do mundo.
Pedro Vintém

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Geração Fodida

exercício Crónica 'versus' Coluna de opinião - aqui, e pegando num primeiro texto resultante do exercício sem QUE, a Rita opta pelo primeiro género, desenvolve e produz uma crónica poderosa.
Posso dizer uma coisa fora do contexto? Devaneios contam? Não há contexto para os devaneios. Podem não ter sentido e podem ser ditos a qualquer momento, menos a meio de um jantar romântico à luz das velas, podemos parecer loucos e acabar por dar cabo do ambiente. Por falar em romântico, qual é o antónimo dessa palavra? Não me ocorre nada de momento, mas falemos disso mesmo.
Hoje em dia, ainda conseguimos encontrar resquícios de um pensamento conservador. O mais flagrante será o da imagem do homem como chefe de família, ou seja, o detentor do poder. Mas cada vez mais as mulheres reclamam esse estatuto e tomam as rédeas da vida sexual. Agora, alguém me explique a razão pela qual isso faz de nós, mulheres, umas putas e vocês, homens, uns garanhões? Quer dizer, eu não posso, portanto, ter vários namorados porque sou logo vista como “aquela-com-quem-não-devemos-casar”. Se estivéssemos em Hogwarts, eu seria, então, “aquela-cujo-nome-não-deve-ser-pronunciado”. Pois é, estas categorizações não deixaram de existir. Já ninguém nega o facto de todos termos necessidade de ter relações sexuais mas uma mulher que possa desenvolver um comportamento sexual “de homem” é que não!
Todos sabemos que, nos últimos tempos, as relações amorosas têm vindo a sofrer mutações. Antigamente, o sexo era a última etapa de um longo percurso de conversinhas, cineminhas, jantares, no fundo vendas de sonhos (como um bom marketeer sabe fazer). Hoje em dia, atrevo-me a dizer que é precisamente o contrário, isto é, começamos pela cópula e só depois disso poderá ou não haver uma consolidação de acordos. Certo é que, em muitos casos, não chega a haver uma segunda saída. Às vezes, há relações que podem durar um pouco mais, até ao dia em que surpreendentemente, chegam ao fim. “Puff” desapareceu! Para onde é que ela foi? Questionemo-nos a nós próprios, o que é que procuramos afinal? Eu não sei a resposta, nem é esse o propósito desta crónica. Por enquanto, a única coisa que sei é que gostamos do rótulo, mas quase nunca da embalagem toda. Podem agradar-nos parcelas que constituam “X” ou “Y” - chamemos-lhes “Ana” e “João”, respectivamente - mas não gostamos deles ao ponto de abdicarmos as nossas vidas. Olhem o exemplo do suicídio por amor, também deve ter caído em desuso, assim como todo o romantismo. “-Ai não queres nada comigo? Pfffff…tu é que perdes!”. Não é assim que fazemos agora? Os relacionamentos afectivos de hoje são como as pilhas que compramos nas lojas dos chineses, duram muito pouco. Aquilo que conhecíamos por “amor romântico” faz parte da velha guarda, não está mais na moda. Como alguém disse e bem, “As relações de exclusividade são a excepção, não a regra”. Perante isto, com que confiança é que posso entregar-me a alguém? Nós não somos a geração perdida, somos a geração fodida. E não, criancinhas, a Bela nunca há-de apaixonar-se pelo Monstro, a não ser que ele a salve de uma vida de infortúnios mas, para isso, terá que ter um bolso bem fundo. Em oposição ao que se costuma dizer parece que, para muitas pessoas, mais vale estar mal acompanhado do que só. Se, outrora, fazíamos colecção de discos vinil, hoje compilamos novelas mexicanas. A Bela Adormecida já não é mais salva de um estado de semi-coma, com a ajuda de um príncipe encantado que lhe furta um beijo e a faz acordar para a vida. Não. A história, que conheço, mais parecida com esta é de uma amiga minha, a Joana, que acordou de um coma alcoólico, com um linguado de um desconhecido e que não a fez acordar para a vida, como a Bela, mas simplesmente a vomitar. Não me parece muito romântico. Aliás, nada disto parece, mas esta é – desculpa, Al Gore – a minha verdade inconveniente.

Rita la Rochezoire

O meu buraco esquerdo

neste exercício, os alunos eram confrontados com um objecto e obrigados a escrever um texto com este - no caso, umas algemas felpudas... - como protagonista, e em discurso directo.
O meu buraco esquerdo já não funciona tão bem como dantes. Anda perro. A idade não perdoa.

Nem sempre tive esta vida, nem sempre fui escrava de prazeres carnais, nem sempre, nem sempre. O importante é ter um rumo, não andar à deriva.

Nasci do calor da fornaça. Singular. Encaixaram-me minutos depois à corrente que viria a ligar-me ao meu irmão gémeo, ao meu buraco esquerdo.

Na fábrica todos temos os mesmos pais. É triste dizer que nunca tive tratamento especial da parte deles. É um sentimento colectivo, penso.

Embora muitos novos, rapidamente fomos às mãos da polícia. O nosso primeiro trabalho! Estávamos tão orgulhosos. Nos primeiros dias andávamos pegadinhos ao coldre, víamos a cidade reflectida no corpo. Fantástico.

O nosso primeiro preso foi um traficante de droga. Quando o polícia pegou em nós e nos atou àquelas porcas mãos, foi revigorante. Sentimos a adrenalina a subir-nos pelo ferro acima. A primeira semana foi sempre assim. A cada algemada, uma experiência nova. Que bom sentir que éramos úteis.

Um dia, o Inverno chegou e com ele veio a chuva. Depois da temporada de Verão as primeiras gotas até souberam bem, mas nada nos levaria a prever o que aconteceu ao meu buraco esquerdo. Estava perro. Por mais óleo que lhe pusessem, não havia maneira daquela perna funcionar. Enfim, foi o início do nosso fim.

Fomos reciclados. Puseram-nos penugem por cima e cá estamos, a servir a bel prazer os actos mais delirantes dos mais excitados casais.

Filipe de Carvalho

exercício do objecto em discurso directo - algemas



Dentro de uma embalagem, pendurada por um gancho. Um sufoco longo e arrastado, por vezes animado pelo contacto de umas mãos envergonhadas e suadas que me estudam, para depois me deixarem exactamente no mesmo sítio. Ou pior ainda, pegam em mim, dão umas risadas ridículas, fingem ter nojo do meu revestimento, e depois largam-me ao pé dos chicotes. É o pior corredor da loja, o corredor forrado com os mauzões pretensiosos e arrogantes. Eles estão convencidos que ninguém os compra por brincadeira. Que eles não povoam despedidas de solteiras beatas e puritanas que nessa noite particular acham terrivelmente engraçado atirarem-me a mim e aos meus colegas de loja como se tivéssemos uma doença contagiosa. Tocar, sim – sempre com repugnância e risinhos irritantes – mas por muito pouco tempo. Os chicotes acham que são só comprados por sadomasoquistas puristas e reais. Mas o pior de tudo, é que eu só sei estes pormenores todos, porque de vez em quando alguém devolve algum artefacto. Eu só conheço o sufoco da minha embalagem. As luzes abrem ao meio-dia e fecham ás dez da noite. A Dona Maria limpa desinteressadamente os corredores e os expositores todos os dias depois da loja fechar. É o meu único momento de prazer, quando o espanador toca o metal e me arrepia o pelo. Mas a Dona Maria não faz isso sempre. Principalmente porque quando vem o stock novo (o pelo delas é chinês, mas o meu é nacional) fico entalada lá atrás, longe do alcance do espanador. Sufocada na minha embalagem de plástico, comprimida contra a parede. E aquele papel em cima de nós todas, onde está indicado o preço, só me torna mais deprimida. Aparentemente, ninguém está disposto a pagar aquela quantia por mim. Já perdi a esperança. Nenhum casal simpático, com uma vida sexual saudável e diversa me vai levar para casa. E acabar numa despedida de solteira parece-me pior que ficar abandonada com os chicotes. Resta-me esperar pelo espanador da Dona Maria.

Leonor Mac

exercício sem QUE



Posso dizer uma coisa fora de contexto? Gruas.

Já não estamos todos fartos de gruas? Aquelas coisas amarelas gigantes em todas as ruas de Lisboa, sim essas. Não sei a razão pela qual o homem criador da grua não arranjou um formato menos brutal. Digo isto no mau sentido. Não lhe custava nada fazer uma coisa mais discreta. Pois acho desnecessário ter de andar com medo de ser esmagado por uma besta de 1000 toneladas quando ando na rua. E os homens controladores daquele aparelho do Satanás? Como é possível acordar de manhã bem disposto, quando se tem de subir o equivalente a vinte andares para ir trabalhar? Partindo do princípio da falta de intervenção tecnológica nessa área. Mas agora a sério. Não percebo mesmo a razão da existência de 5 gruas em 20 metros quadrados. Começo a desconfiar de uma rivalidade entre os operadores de gruas e os pilotos de avião. Ou se calhar os nossos exercícios precisam mesmo de gruas. Se calhar.

Sebastião Lopes

ps: que tem apenas 14 anos, rai's parta...

exercício das 5 palavras obrigatórias

Esfola o Coelho grita o Avô Jerónimo para o agitado neto de nome Joãozinho.
- O almoço justificará o esforço, diz o avô.

Quando levava o pobre Coelho para a Avó Gertrudes cozinhar, Joãozinho cai desmaiado no chão estatelando-se em cima do estribo de um cavalo:

- Socorro, Socorro grita a avó Gertrudes, apavorada por ver o neto naquela situação. Deu a sulipampa ao Joãozinho. Que raio de ideia esta de pôr o pequeno a esfolar o Coelho, lamentava a avó Gertrudes.

O Pequeno Joãozinho tinha aversão ao sangue e tal facto não era do conhecimento dos seus Avós.
Rui Filipe Ferreira

palavras obrigatórias



SULIPAMPA – ALMOÇO – IDEIA – ESTRIBO - ESFOLA

Não sei quem teve a ideia de marcar a consulta no ginecologista à hora do almoço. Quando a médica finalmente chegou, já eram 4 da tarde e nenhum dos dois tinha comido. Lá entraram, cabeça pendente como se fossem para a forca. A rapariguinha veste a bata enquanto o rapaz, muito branco, suspira profundamente do outro lado do biombo. Bastam 5 minutos em cima da marquesa para a médica dar o veredicto: parabéns, vão ter trigémeos. Foi a gota de água: o rapaz tem uma sulipampa, e, desmaiado, escorrega para o chão como manteiga derretida. Nesta aflição, a rapariguinha, querendo acudir-lhe, levanta a perna do estribo a alta velocidade, ferra um pontapé na cabeça da médica que, projectada contra parede, esfola a testa e o nariz na tinta de areia cor de pêssego da parede do consultório. A ginecologia, é uma especialidade muito violenta.


Ana de São João

sem QUE


Posso dizer uma coisa fora do contexto?

Costumo ler a TV GUIA enquanto faço cocó. Não sei, mexe comigo. Tenho este hábito. É uma coisa cá minha. Liberta-me. Se estou com dificuldades mais facilmente me descongestiono. A TV GUIA é para mim o Gutalax literário.

Posso dizer uma coisa mas agora dentro do contexto? Posso? Ok. Conpiaçátexto. Pronto, já está. Obrigado.

Fico profundamente agradecido por me terem deixado escrever piaçá dentro do contexto, pois tenho muita pena da palavra piaçá. A palavra piaçá, se sentir, deve-se julgar a pior palavra do mundo. Quem é que fora da intimidade de si ou dos seus, diz ou sequer pensa dizer 'piaçá'. Ninguém. As pessoas se calhar têm vergonha de dizer 'piaçá'. Não sei? Não percebo qual é o problema. Coitada da piaçá. Não é justo.

Eu não tenho espigas com isso. Só por causa das coisas aqui vai: piaçá, piaçá, piaçá.

Aliás, vou mais longe, devia-se instituir a palavra piaçá para nos cumprimentarmos diariamente em sociedade, por substituição de expressões como olá, oi, bom dia, boa tarde ou boa noite. Uma pessoa encontrava um amigo na rua e dizia:

- Piaçá, tás bom?

E o outro, naturalmente, respondia:

- Piaçá, tudo bem?

Em momentos mais formais também fazia todo o sentido. Por exemplo, o José Rodrigues dos Santos passava, no final no jornal da noite da RTP, a despedir-se da seguinte forma:

- Piaçá, voltaremos a ver-nos amanhã.

Pedro Magalhães

Posso dizer uma coisa fora de contexto?

exercício sem 'que'

Já podemos pegar fogo ao hotel. Descobri onde está a escada de incêndio. Está do outro lado da varanda, quando contornamos o edifício, virada a sul. É fácil. Precisamos apenas de arranjar material combustível. Pano, papel, madeira. Fazemos uma pilha e pegamos-lhe fogo. As chamas depois farão o resto.
Pitta

texto com 5 palavras obrigatórias

Sulipampa
Almoço
Ideia
Estribo
Esfola

Já não nos víamos há tanto tempo que agora estarmos frente a frente era bastante desconfortável. Passo as mãos pelo cabelo repetidas vezes como se isso me desse uma aparência descontraída. Aliso a franja, tento que os cabelos estejam impecavelmente direitos. Que péssima ideia que isto foi, combinarmos um almoço. Estes amigos que são amigos na infância, onde as ligações são feitas de pequenas crueldades, como ter um inimigo em comum, em que um diz mata e outro diz esfola, ou se conseguirmos que um dos nossos pais tenha uma sulipampa, então somos amigos para todo o sempre. É mentira, e hoje isso é mais que evidente. Ainda por cima este restaurante não podia ser mais intragável. As paredes estão cobertas de fotografias de cavalos, selas de todos os tamanhos e feitios, e até um estribo em cada mesa. Eu detesto cavalos. Raios partam as redes sociais. Que péssima ideia.


Maria Leonor Cardoso

palavras obrigatórias, de Paulo Falcão



Sulipampa, Almoço, Estribo, Ideia, Esfola

No ano de 1962, havia na vila nortenha de Arvoredos de Estribo um casal homossexual idoso, a rondar os seus 60 anos.
Os dois homens, haviam-se conhecido vinte anos antes num célebre almoço de antigos combatentes nacionais da I Grande Guerra. Apesar de, na altura, serem ambos casados com ilustres senhoras, bastou uma jogatana de sueca, onde ambos fizeram parelha de sucesso, para que uma enorme chama de esfola coração consumisse as entranhas de ambos.
Sulipampa de amor, ou talvez o mero saudosismo das noites solitárias na caserna, a verdade é que a simples reacção fez com que ambos dessem um novo rumo às suas vidas. Abandonando as suas famílias e deixando o mundo para trás, a 90 à hora, numa Harley Davidson aconchegante, rumaram sem destino até não avistarem mais os horizontes do seu passado.
Quis a fortuna que o depósito do motociclo desse de si nas imediações de uma pacata vila de brandos costumes. Apesar da resistência inicial, o povo de imediato aceitou a ideia de albergar dois ex-militares, pois, acima de tudo, havia agora alguém capaz de declarar guerra ao gangue de javalis que anualmente dizimava as colheitas de milho dos aldeãos.

A Bela Adormecida

neste exercício todos os textos teriam de começar pela frase: 'Posso dizer uma coisa fora de contexto?' e não incluir de modo algum a palavrinha maldita 'QUE'
Posso dizer uma coisa fora de contexto? Afinal a Bela Adormecida esteve em coma. Diz a voz popular de outro tempo, na aldeia Conde das Barbas, ter existido uma jovem e bonita moça de nome Adelaide, conhecida por Belita. Esta era esguia, de pele morena e detentora de um olhar profundo. Um conceito de beleza invulgar, dada a época. Dava nas vistas, não só por ser estranhamente bela mas por ser diferente de todas as mulheres da aldeia. Ali, em Conde das Barbas, todos possuíam uma farta barba: homens, mulheres e crianças. Uma espécie de código genético único daquela gente.
Belita, ou Adelaide se quiserem, não possuía tamanha característica e já em pequena era gozada pelas crianças. Posta de fora da sua sociedade, nunca namoriscou ou participou nos mais variados momentos colectivos da sua aldeia. Era, recorrentemente, vítima de calúnias, injúrias, mal dizeres e muitas vezes surgiam cantigas ou poemas em sua “homenagem”. Viveu assim, sempre à margem dos outros
Certa manhã, cansada de ser alvo de piadas maliciosas e escabrosas, decidiu pôr um termo à situação. Remexeu num baú velho, encontrou um novelo de lã castanho e teceu uma bela e vigorosa barba. Desta vez iria mudar o rumo da sua vida pois a barba ali era um sinal de dignidade e sinónimo de pertença genuína ao local.
Nessa noite foi feito um grande banquete pago pela Junta de Freguesia. Todos celebraram e todos beberam vinho até caírem para o lado. Foi uma noite feliz para todos. Porém, uma doença fatal foi esquecida, sofria de alergia a ácaros em 1º grau. Bêbeda, desmaiada e um pouco sufocada pela barba de lã, Belita começou por entrar num profundo coma e nunca mais acordou.
Esta é a verdadeira estória alegórica da Bela Adormecida.
Joana Galhardas

palavras obrigatórias



Já reparaste como o brainstorm é parecido com uma sessão de berraria à porta do tribunal?
Junta-se um grupo de pessoas, sem ideia de onde se conheceram, em local e hora previamente combinados e todas com o mesmo objectivo.
Saindo o acusado, é dado o início da sessão de berraria.
Começa tudo com um tímido “ladrão!” por parte do barrigudo. O senhor de bigode olha para este, percebe o tom, e diz “gatuno!” ainda mais alto. A senhora de bigode, já com o pé no estribo da vedação, lança do nada um “esfola o gajo!” e como se desse uma sulipampa àquela gente toda, acaba tudo com ofensas de “filho da puta” para cima.
No fim da sessão vai tudo calmo para o almoço, com a sensação de dever cumprido.

Pedro Vintém

exercício das palavras obrigatórias

almoço
ideia
estribo
esfola
sulipampa
Detesto o processo de associação mental. Detesto-o pelo engodo. Não é um processo, mas um mero acontecimento. Nada se sucede. Esgota-se, consome-se de imediato. Não começa, medeia ou acaba. Os três conglobam-se.
Quando se pergunta a cinco pessoas qual é a primeira palavra que lhes vem à cabeça, elas nunca lhe dirão qual a primeira palavra que lhes veio à cabeça. A minha seria impronunciável na presença de senhoras. Não posso, por isso, deixar de questionar o que levou os meus colegas à adopção daquelas palavras. De facto, não serão as primeiras em que se pensou, mas as primeiras que se quis dizer.
Sulipampa é fácil. Trata-se de um convite ao devaneio, uma mostra de criatividade. No entanto, não me excita. É como um gajo andar a fazer triplo salto com o Nélson Évora e aterrar já no tartan. Vê-se logo que houve doping.
O almoço é biológico. É sugestivo da fome do interlocutor. O almoço é a razão porque Pavlov poderia, no fundo, ter utilizado humanos nas suas experiências sem ofensa de grandes declarações universais de direitos.
A ideia é boa. É imediata, é um bom scapegoat literário. Safava-me se estivesse a escrever um texto sério. Depois, é uma resposta genuína. “Qual é a primeira ideia que te vem à cabeça?” “Ideia”. Um gajo processa e dispara. Zero interferência. Um perigo na presença de mulheres.
Estribo transcende-me. Hipismo? Provável, mas incerto. Sadomasoquismo? O colega é demasiado novo. Substantivo invulgar e difícil de enquadrar para lavar os velhinhos do curso? Só pode ser. Eu sabia que aquela t-shirt significava problemas.
Esfola. É um elemento de acção. Um verbo transitivo. Há a possibilidade de introduzir uma morte violenta na história. Gostei. E tudo com a sugestão de “es” do estribo.
Na verdade, adoro associação mental. Detesto o que me faz.

Pedro Fontes