terça-feira, 26 de outubro de 2010

BULLSHIT


crónica de Pedro Fontes

Não há tradução para o termo bullshit. No cinema, usa-se a "treta", ou resgata-se a "balela". Mas nenhuma lhe é conforme. A treta é algo aceitável, negligenciável. A balela exprime uma certa inadvertência. Tem laivos de ignomínia e é pueril, como uma onomatopeia.

Já a bullshit é sublime. Cavalga-nos a espinha antes de sair. É palavra composta de um palavrão. Os palavrões, como todos os indefinidos, não são domesticáveis. Há, por isso, qualquer coisa de rebelde em bullshit. É a institucionalização de um palavrão. Os palavrões são populares. Bullshit é civilizacional.

Definindo bullshit diríamos (no uso do científico "nós" majestático) que representa uma dissimulação. Mas é uma dissimulação contratual. A bullshit não é um engodo ou um logro. É um exagero retórico da realidade no qual estamos todos de acordo.

Acima de tudo, bullshit é um oxímaro. Não há em qualquer outro vocábulo maior disparidade entre a aversão causada pela ideia e a sedução desencadeada pela prática. Bullshit, enquanto ideia, é uma mentira e é desprezível. Enquanto prática, é uma delicadeza.

A bullshit é um símbolo. Um símbolo do contraste entre a devoção pagã que a sociedade dedica à Verdade e o desprezo que reserva à sinceridade.

Houvesse na bullshit e na verdade interesses sucedâneos ou compatíveis e trilhariam, simbióticas, o mesmo caminho. Não é o caso. A verdade é a verdade que é. Nisso consiste a sua virtude. A bullshit é a verdade que se deseja. É essa a sua qualidade. Na bullshit, a verdade é uma figura de estilo, uma imputação formal para garantir a credibilidade.

São como que a mulher e a amante da sociedade. À verdade vêmo-la a parir, transpirada. A trocar as fraldas aos filhos, a emborrachar os ovos e a arrancar os pêlos do queixo. A amante está sempre arranjada, toda porreira. Tem desejos de usurpação, mas não de compromisso. Mantém segredos, calculando ser-lhe o mistério proveitoso.Sabe vender a ilusão de que as coisas podem ser sempre assim.

A bullshit é, de facto, agradável. Apraz-nos pensar que os políticos são bem intencionados. Que alguém tem a faculdade mental de fazer previsões macroeconómicas com factores na ordem dos milhares de milhões de euros com base em ciência. Que as pessoas não nos julgam em função de um par de sapatos que usámos em 1993. Que a comunidade empresarial mostra assinalável convergência no reconhecimento da necessidade de alertar para a urgência de pugnar pela sustentabilidade das práticas comerciais, ambientais e organizacionais das suas áreas de negócio. Que o mundo não é, no limite, imune à nossa presença em específico.

Há dignidade na bullshit. É um testemunho da fraqueza humana, passe a redundância. O Homem não suporta o acidente axiológico. A inconsequência do bem e a impunidade do mal são-lhe incomportáveis. A bullshit é a convenção que previne o confronto com o assombrante facto de que todas as histórias terminam com: "e depois, morreu".

Os dias passam-se em plena bullshit, e passam-se bem. Admitimos que alguém possa achar o Braveheart o melhor filme de sempre. Ela está gira, quando nem por isso. Os jantares nas casas dos outros são óptimos. Que felizes estamos nos anos de malta que não conhecemos muito bem. Como adoramos livros que nunca lemos, e com que alegria os levamos para a praia para dizer que são bons e levezinhos. Digam o que disserem, a vida só depende de nós.Where there's a will, there's a way. Não, ninguém envelheceu ou engordou. O que interessa é a intenção.

A bullshit é, afinal, nobre. É o humano amparo para a crueldade e nihilismo na Natureza. A bullshit é o reverso da árvore que, caindo num bosque onde ninguém a ouviu cair, não fez som. É aquilo que todos ouvem sem que aconteça de facto. Nessa medida, é retumbantemente real. Viver sem bullshit é viver em dissonância. É ser chato e cínico. É ser um rebelde fácil, por se contestar um erro voluntário. É ser um realista desapegado da ideia social de realidade. É a única e, ainda assim, paradoxalmente errada maneira de ser um cientista social.

Pergunto-me com frequência, por isso, o que carreia a aversão abstracta à bullshit.

Não creio que seja fácil, mas parece-me ser simples. A bullshit obsta à transcendência. Irreleva-a, porque a vulgariza. A bullshit é a guardiã das expectativas, e a experiência humana precisa do consolo translúcido de um propósito final. A verdade, por sua vez, tem o potencial de sindicar ao óbvio o extraordinário. A História não se compadece com boas intenções - julga os factos. E os factos são que nem todos, por dignos que sejam, são memoráveis.

A verdade é como o asterisco depois do slogan. Não é o que interessa, mas é o fundamental.

Há beleza nisso também. Tenho um primo miúdo com quem nunca uso bullshit, e ele repete-me a graçola. Pu-lo às cavalitas em noite de chuva de estrelas.

"Porque caem as estrelas?" Perguntou-me.

Respondi-lhe que não eram estrelas. Eram pedras do espaço, atiradas com muita força, que ardiam com a resistência do ar.

"Porque é que as pessoas lhes chamam estrelas?"

Não sabia. Mas achava que era por terem dificuldade a chamar pedra a algo tão bonito.

"Mesmo quando as coisas são boas como são, as pessoas têm necessidade de mentir. Eu acho que uma pedra voadora a arder é muito mais fixe do que uma estrela parada.

Se eu correr muito depressa, também ardo?"

Ardes que nem frango.

"Um dia, vou pegar fogo"

Talvez fosse. Expressando o meu lamento pelo dia em que dispensaria se sentar nos meus ombros, pedi-lhe para descer porque começava a ficar pesado.

"Eu nunca me vou fartar de andar às tuas cavalitas".

Não mentia. Mas ia-se fartar. E ia chamar-lhes estrelas cadentes. Aconteceria quando deixasse de acreditar que podia brilhar com o atrito.

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