sábado, 16 de outubro de 2010

História das Algemas

exercício do objecto em discurso directo

Sinto ao longe o arder da fornalha que me espera no final deste meu corredor da morte. Queima, como se quisesse expurgar do meu corpo os pecados de uma vida de desvarios mundanos, da qual já só resta uma pele ferrugenta e um peludo tecido esgaçado. Calor igual só senti naquela noite em que fui forjada, algures nas montanhas siberianas, e onde após umas fortes marteladas em cima, vi pela primeira vez o mundo com os meus olhos.
Que saudades dos tempos de então e dos prazeres nocturnos que vivi, naquela prisão da Sibéria, saltando de cela em cela, dando as boas vindas a todos novos residentes. Apesar de todos eles me passarem pelas mãos, foi o Oleg que me abriu os horizontes para uma nova vida, quando em determinada noite me trouxe consigo para fora dos muros infindáveis daquele local.
Mas amor é sofrimento e, sem que me conseguisse aperceber, estava a ser atirada ao mar durante a sua fuga. Durante anos, perdi o norte à vida e, sem sentido para a minha existência, deixei-me levar pela corrente rumo ao desconhecido. Passaram anos até que junto a uma praia voltei a sorrir para a vida. Os anos tinham deixado a sua marca mas a minha sensualidade não passou despercebida a um jovem artista de estampa vigorosa. Apesar da sua carreira musical estar a dar os primeiros passos acabámos por nos tornar inseparáveis durante todo o seu percurso. Juntamente com outros rapazes dávamos pelo nome de Village People e percorremos o mundo em noites intermináveis. Ai, os anos 70! Ai, as noites a abanar naquela cintura negra e musculada!
Foi sem glória que acabou esta amizade tão promissora quando, após um espectáculo em Portugal, fui abandonada numa pensão rasca, esquecida após uma noite de excessivos excessos. Encontrada por engano, por uma empregada de limpeza kosovar, fui entregue aos cuidados de um velho coleccionador de reliquias lisboeta. Durante muitos anos estive exposta, como um trofeú de guerra, junto à lareira da mansão deste aristocrata. Até que um dia, chegou a hora do seu filho - um jovem adorável que vi crescer - me vender em plena feira da ladra, sem um pingo de piedade, a um homem com uma boina sobre a cabeça.
A início quis acreditar que este homem me iria voltar a fazer feliz e tornar-me no seu objecto sexual. Um banho de cromo e uma cobertura felpuda em meu redor, que apesar de me fazer parecer uma alheira de mirandela, levou-me a acreditar numa segunda vida. Infelizmente, este homem traíu-me com as suas segundas intenções. Nem uma noite temática, nem um jantar mais arrojado, nada. Sou apenas um objecto de inspiração artística.

Paulo Falcão

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