sexta-feira, 15 de outubro de 2010

exercício do objecto em discurso directo - algemas



Dentro de uma embalagem, pendurada por um gancho. Um sufoco longo e arrastado, por vezes animado pelo contacto de umas mãos envergonhadas e suadas que me estudam, para depois me deixarem exactamente no mesmo sítio. Ou pior ainda, pegam em mim, dão umas risadas ridículas, fingem ter nojo do meu revestimento, e depois largam-me ao pé dos chicotes. É o pior corredor da loja, o corredor forrado com os mauzões pretensiosos e arrogantes. Eles estão convencidos que ninguém os compra por brincadeira. Que eles não povoam despedidas de solteiras beatas e puritanas que nessa noite particular acham terrivelmente engraçado atirarem-me a mim e aos meus colegas de loja como se tivéssemos uma doença contagiosa. Tocar, sim – sempre com repugnância e risinhos irritantes – mas por muito pouco tempo. Os chicotes acham que são só comprados por sadomasoquistas puristas e reais. Mas o pior de tudo, é que eu só sei estes pormenores todos, porque de vez em quando alguém devolve algum artefacto. Eu só conheço o sufoco da minha embalagem. As luzes abrem ao meio-dia e fecham ás dez da noite. A Dona Maria limpa desinteressadamente os corredores e os expositores todos os dias depois da loja fechar. É o meu único momento de prazer, quando o espanador toca o metal e me arrepia o pelo. Mas a Dona Maria não faz isso sempre. Principalmente porque quando vem o stock novo (o pelo delas é chinês, mas o meu é nacional) fico entalada lá atrás, longe do alcance do espanador. Sufocada na minha embalagem de plástico, comprimida contra a parede. E aquele papel em cima de nós todas, onde está indicado o preço, só me torna mais deprimida. Aparentemente, ninguém está disposto a pagar aquela quantia por mim. Já perdi a esperança. Nenhum casal simpático, com uma vida sexual saudável e diversa me vai levar para casa. E acabar numa despedida de solteira parece-me pior que ficar abandonada com os chicotes. Resta-me esperar pelo espanador da Dona Maria.

Leonor Mac

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